Arquivo mensal: fevereiro 2011

Do conhecer-se a ti mesmo ao desconhecimento de si mesmo – olhar descontínuo sobre a quirologia. Pesquisa acadêmica sobre a leitura de mãos

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Nessa sessão vou contar um pouco da minha experiência de vida com a leitura de mãos e dos obstáculos que encontrei, encontro e tento superar frente às minhas escolhas. Comecei a ler mãos misteriosamente, aos 8 anos de idade. Simplesmente me vi olhando a mão de uma professora de escola e dizendo a ela dificuldades de sua vida que estava passando. Com o tempo eu percebi que tinha um registro de memória riquíssimo sobre como ler as mãos. Hoje atribuo esse fator e seu aparecimento aparentemente “do nada” como uma herança de vidas passadas.

Desde os oito anos nunca parei de ler mãos de diversas pessoas. Conforme ia crescendo, eu mesma questionava como isso podia ser possível, como as mãos refletem linhas que contam nossas histórias? A partir dessas perguntas nasceu em mim uma curiosidade ingênua, que com o passar do tempo foi se tornando uma curiosidade epistemológica. Conversas com intelectuais, céticos, espiritualistas, fanáticos, físicos, engenheiros, ciganos, psicólogos, enfim, dos mais variados tipos de pessoas e idéias fui percebendo como era difícil entrar cientificamente no campo da quirologia. O grande motivo de isso acontecer é que cada pessoa tinha uma idéia da leitura de mãos, e cada pessoa se baseava nas suas experiências e história de vida para construir essa idéia, ou melhor, essa imagem.

Percebi que para entender a quirologia precisava entender tudo que as pessoas podiam recorrer para pensar nela. Nisso acabei desenvolvendo uma pesquisa acadêmica sobre a imagem da leitura de mãos.

Como já foi explicado, a posição marginalizada da quirologia e suas diversas atribuições foram o ponto de partida para o objetivo da pesquisa que realizei. Sob a luz da semiótica social (area de estudo que se ocupa com a os signos e a formaçao de significados), empenhei-me em uma verificação da imagem da quirologia por pessoas com nível de escolaridade, superstição e crenças variadas[1], assim como quais fatores poderiam ser intervenientes no processo de atribuição de significado por cada indivíduo. Além do significado da quirologia para os indivíduos pesquisados, pude também ter a chance de observar a precisão atingida por minha técnica de leitura de mãos na percepção dos mesmos. Os participantes da pesquisa responderam dois tipos de questionario e deram suas impressões antes e depois de passar pela experiencia de leitura de mãos. Eram pessoas de variadas crenças, níveis de escolaridade e grau de superstição. Verifiquei quais desses fatores seriam variáveis intervenientes para a construção do significado da quirologia por parte dos pesquisados, ao passo que uma observação da precisão da técnica empregada também foi apreendida.

Assim, me submeti a ler as mãos de 30 pessoas, das mais diversas possíveis, desde pessoas que acreditavam até pessoas que achavam que a leitura de mãos não passava de puro charlatanismo. Além da pressão dos participantes, durante todo processo fui observada por pesquisadores. A seguir disponibilizo aos meus alunos mais curiosos a conclusão de minha pesquisa acadêmica, realizada no ano de 2006 a 2008, em Belo Horizonte, sob a orientação da doutora em Semiótica Social, Cássia Helena Pereira Lima. Essa pesquisa foi avaliada por uma banca de quatro doutores, incluindo mais uma doutora em semiótica social pela UFMG, foi aprovada com louvor, alcançado a nota máxima de 100 pontos.

Lembrando que o texto a seguir está aos moldes da linguagem acadêmica.

 

Conclusão e considerações finais da pesquisa sobre leitura de mãos

A curiosidade de fundo epistemológico que gerou essa pesquisa, ao encarar a quirologia, esteve em primeira instância voltada para a natureza sígnica de sua teoria, no fato dos símbolos representarem a base teórica para suas interpretações. A vontade era estudar essas interpretações em contraposição com as interpretações realizadas pela semiótica. Porém, o percurso do caminho, desde a apresentação do projeto de pesquisa, até seu desenvolvimento, que colocou 30 pessoas em contato direto com a experiência da quirologia, deparou-se e guiou-se com uma diversidade de indivíduos que se posicionaram em grupos de interpretação distintos frente ao objeto de estudo. A percepção da pesquisadora, sob acréscimo da sugestão de sua orientadora de pesquisa, tomou como primeiro passo estudar a quirologia sob a luz da ciência, a identificação de sua imagem e significado, tanto antes quanto após o contato com a leitura de mãos.

Com o objetivo pautado no estudo da determinação de opiniões sobre a quirologia, a estratégia foi captar o que as pessoas pensavam sobre, e feito isso, nada melhor que proporcionar a esses, uma vivência com a leitura de mãos. Passada a experiência individual, foi possível captar mudanças na visão dos pesquisados, pelo conteúdo das declarações registradas em questionário e pelas informações emitidas informalmente. A maior dificuldade foi identificar quais motivos, ou seja, quais fatores poderiam influenciar as opiniões, sentimentos, condutas e o por quê.

Os dois questionários de cada um dos 30 participantes tiveram seus conteúdos analisados individualmente e depois, os 60 foram agrupados em semelhanças de interpretação bem como os dados extraídos das gravações. As variáveis consideradas, nível de escolaridade, crença e grau de superstição, não revelaram incidir interferência nas interpretações gerais acerca do objeto de estudo. Salvo a dúvida acerca de duas participantes que parecem, o que não é certeza, terem usado o viés religioso para formular suas considerações acerca da leitura de mãos.

Os resultados acadêmicos revelaram ainda, mesmo depois do contato com a leitura de mãos, várias visões acerca da quirologia. A tentativa de cada indivíduo de compreender a experiência que viveram, em todos os casos revelou a necessidade de reconhecimento da linguagem quirológica com o contexto histórico pessoal, mas, em alguns casos deixou evidencias de uma atribuição de significado em via de outros aspectos do contexto pessoal. Essa explicação é referência às pessoas que deram, em suas interpretações, um sentido esotérico a vivência, em associação com a adivinhação e com outras formas oraculares como o tarô, os búzios entre outros. E também aqueles que consideraram a intuição como ferramenta da quiróloga. Essa visão, sugere um encerramento da quirologia no círculo da crença, que independe de qualquer validação cientifica, pois é motivado pelo mistério da fé.

 Em contrapartida às interpretações descritas anteriormente, também revelaram posições neutras, no sentido de não tomarem um caráter frente ao que conhecem pouco, posições reflexivas, acerca da possibilidade de lógica na técnica ou também na possibilidade de ser uma ferramenta relacional, e posições negativas, no sentido de associação ao charlatanismo. Essa variedade de sentidos, torna evidente que a vivência com a quirologia, possibilita múltiplas leituras e a construção de significado envolve considerações subjetivas, onde cada ponto de vista é material de edificação, e a questão de que nem toda subjetividade passou por um juízo racional.  Tal aspecto impôs a pesquisa indagar sobre a natureza desse receptor e ao mesmo tempo leitor de possibilidades já que é possível perceber uma correlação entre a assimilação do indivíduo com seus repertórios culturais e taxas informacionais. A avaliação do controle individual dos pesquisados após as leituras, bem como da própria quirologia e dos ciganos foi fundamental para o resultado.

Ou seja, o olhar que se pode direcionar a quirologia envolve o desconhecido, já que os pesquisados, salvo a Jornalista, não conheciam como o procedimento da leitura de mãos é realizado. Nada se pode estabelecer em termos científicos e comprobatórios sobre o assunto até então, e qualquer disposição de vivência com a mesma envolve algo oculto. O oculto, no mundo, já possui uma construção de valor, por meio de um histórico que se separou de explicações lógicas e se aproximou de mistérios que só podem ser compreendidos por meio da experiência única de cada indivíduo. O olhar diante da quirologia sugestionou a interpretação da pesquisadora a possibilidade de envolver:

  • construção subjetiva de cada um. Onde entende-se por subjetividade “a compreensão que temos do nosso eu, que por sua vez envolve pensamentos e emoções. Nós vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual adotamos identidades, ou seja, as posições que assumimos e com as quais nos identificamos é que constituem nossas identidades” (Vieira apud Lima, 2005, p. 51);
  •  julgamento do assunto envolver tanto o lado emocional como o racional;
  • aceitação por via do oculto, ou negação. O oculto remonta a construção do sobrenatural, do inexplicável, do que acontece misteriosamente em experiências particulares impossíveis de serem registradas no momento em que acontecem;
  • associação com a imagem dos ciganos, que, ou é elevada por um ideal de magia e liberdade ou é marginalizada, ressaltando que na literatura encontrada a apresentação dos ciganos é normalmente negativa, já que só foram encontrados registros históricos sobre eles quando causavam algum problema, porém pode-se citar um grande desenvolvimento no comércio que quebra práticas hegemônicas e uma contribuição expressiva na música e na dança;
  • a consideração do oculto abarca a aceitação de cada indivíduo e retorna a um elemento secundário da subjetividade, que diz respeito a posição religiosa ou espiritual de cada um. E também a polarização do mundo do conhecimento dividido em quatro vias de regra: ciência; religião, tendo que a ciência pode ser a religião de alguns; filosofia e senso comum.

 

Percebe-se que a realização dessa pesquisa, nada encerra por não esgotar-se em si mesma, sobretudo provoca outros trabalhos frente a constatação de múltiplas leituras.Constatou-se que a imagem da quirologia, como no princípio, continuou sendo cominada de variadas formas, de certo que ocorreram mudanças em posicioná-la positivamente como algo capaz de revelar sobre os indivíduos, porém, as imagens, sejam positivas ou negativas reforçam a dúvida em torno da natureza da quirologia. O que vislumbra trabalhos a serem realizados em tempo futuro, que encontrem alguma maneira de esclarecer a teoria quirológica.

A estratégia de pesquisa que colocou os observados frente à aplicação da teoria apresentada pela quirologia, pode também atender o objetivo de verificar a precisão da técnica na percepção dos entrevistados, apontando indícios de acuidade. Em outras palavras, das 30 pessoas pesquisadas, 29 declararam precisão das informações passadas pela leitura de mãos em comparação as suas vidas. Todavia, esses indícios são dados insuficientes para conclusões fechadas acerca de sua eficácia, mas, podem ser vistos como grande estímulo para realização de novas pesquisas, que tenham em seus objetivos averiguar com uma estatística mais apurada e uma observação mais ampla, o nível de precisão das informações passadas por teorias quirológicas.

O trabalho não tinha pretensão de dar respostas conclusivas, mas cumpriu o objetivo de dar o primeiro passo, visto que não foram encontrados trabalhos acadêmicos sobre o assunto. Fica a hipótese, interstício de reflexão de alguns pesquisados, de haver uma lógica de aplicabilidade técnica, capaz de revelar sobre as características das pessoas, como nas palavras do Advogado, um dos pesquisados, com as quais finalizamos com a certeza de que grande ainda é o caminho pela frente: a primeira experiência mostrou-me que há uma “linguagem” com um possível viés de natureza objetiva, talvez a história nos deixe mais que rugas e cabelos brancos.


[1] A amostra deu-se em 30 pessoas. Em face da necessidade de escolher uma parte representativa da diversidade do todo (MARCONI; LAKATOS, 2007), considerou alguns critérios balizadores: faixa etária, grau de escolaridade, profissão e crença religiosa.

Em relação à faixa etária, foram selecionadas pessoas acima de 23 anos, já que apresentam um desenrolar histórico pessoal considerável para reconhecer suposições colocadas pela análise da leitura de mãos, ou seja, apresentam subsídios para avaliar se as considerações eram pertinentes e coincidentes com seu desenrolar de vida.

Em relação ao critério de escolaridade considerou-se o do Ministério da Educação e Cultura – MEC de divisão da educação escolar em básica e superior. Segundo a definição desse órgão (apud LIMA, 2005, p. 77):

(…) a “educação básica” (…) de acordo com a lei 9424/96, é formada por educação infantil, ensino fundamental e ensino médio e refere-se a toda uma gama de atividades educacionais que têm objetivo de atender as necessidades básicas de aprendizagem definidas na Declaração Mundial sobre Educação para Todos. A “educação superior” é a ministrada em instituições de ensino superior públicas ou privadas, com vários graus de abrangência e especialização, e tem como objetivos, entre outros, estimular a criação cultural, o desenvolvimento do espírito científico e o pensamento reflexivo; formar diplomados nas diferentes áreas do conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira.

Seguindo essa atribuição que infere o fato do Brasil, em sua realidade educacional não corresponder à teoria descrita, essa definição foi utilizada para padronizar participantes com educação básica (completa ou incompleta) e com educação superior subscritos em nível de graduação (completa) e pós-graduação (completa).

No quesito profissão, tomou-se a ocupação principal do participante para concernir sua modalidade de atuação. Em relação à crença, assumiu-se por classificá-los em católicos, evangélicos, espíritas, de religião própria (aqueles que têm uma definição própria de sua crença, tomando a existência de um Deus, sem se encaixar em instituições existentes), umbandistas e ateus. Procurou-se também variar o número de homens e mulheres.

Foram selecionados 30 participantes por acessibilidade, de maneira não-probabilística, já que todos os membros da população tinham a chance de serem escolhidos (MARCONI; LAKATOS, 2007), de maneira intencional e por tipicidade. Ou seja, foram escolhidos representantes de cada um dos subgrupos balizadores. Essa seleção foi realizada de maneira gradual, à medida que os entrevistados compunham o corpo da pesquisa, verificava-se quais subgrupos já estávam preenchidos e quais características opostas ainda faltavam a fim de comparar diferentes variáveis possíveis. Essas diferenciações e disparidades foram requeridas para compor o critério suscitado por Vergara (2007) que descreve a necessidade de variar as características dos selecionados a fim de colher informações ou verificar o tema de estudo em diversos níveis e contextos.

Em decorrência da pesquisadora obter o conhecimento para realizar a leitura de mãos, alguns critérios foram adotados a fim de evitar a suspeita de direcionamento da pesquisa por parte da autora e assim, garantir a acuidade e possibilidade de verificação do método utilizado. O primeiro critério consiste na seleção dos participantes, foram convidadas pessoas conhecidas e desconhecidas da pesquisadora, selecionadas pela orientadora desse estudo, para minimizar a possível utilização de informações de conhecimento prévio a respeito da vida pessoal dos participantes. E o segundo consiste na postura dos entrevistados, que a pedido ora da orientadora, ora da pesquisadora, permaneceram em silêncio, sem promover interrupções ou emitir informações ou opiniões durante o ato da leitura de mãos.

A pesquisa referente à imagem social e à natureza da quirologia foi feita por meio de pesquisa, com dois tipos de questionários estruturados aplicados nos 30 participantes. O primeiro, anterior à consulta quirológica, que visou um mapeamento das expectativas e conceituações do entrevistado. O segundo estruturado, aplicado pela orientadora com a ausência da pesquisadora, a fim de não constranger o participante. Esse intencionou mapear a natureza da opinião após a consulta para identificar modificações em relação ao primeiro questionário e, principalmente, registrar as considerações de cada entrevistado em relação ao objeto de estudo. De tal modo, 30 consultas foram realizadas entre os meses de novembro e dezembro de 2008. Todas elas foram arquivadas sonoramente. A pesquisadora não teve acesso ao questionário sem antes terminar as 30 leituras de mãos, para não modificar sua atuação quirológica com os entrevistados. Permitiu, depois de cada consulta, que cada participante falasse livremente e seus discursos também foram gravados e utilizados para a compreensão da interpretação pessoal dos selecionados em relação a quirologia.

Para identificar esses 30 participantes, optou-se mencioná-los por sua ocupação profissional seguido de sua orientação religiosa. Salva também fazer referência ao estado de emoção que alguns entrevistados expressaram depois da experiência, contando fatos de suas vidas que foram abordados durante a leitura numa espécie de catarse, essas descrições serviram, anonimamente, como base para uma tentativa maior de compreensão da quirologia. A amostra alcançou certa heterogeneidade em relação a sexo, nível de escolaridade, profissão e crença.

Ciganos compondo o imaginário popular em torno da leitura de mãos

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A história da leitura de mãos no ocidente foi formada pela história dos ciganos

Como estamos conhecendo a fundo a leitura de mãos, não basta saber como realizá-la, mas também saber como sua imagem social foi formada ao longo da história. Em pesquisa acadêmica que realizei, trinta pessoas que participaram da pesquisa associavam a leitura de mãos ao povo cigano. Logo pode-se averiguar que a posição marginalizada da leitura de mãos, onde pode ser vista de variadas formas, desde ferramenta “oracular” até a imagem de puro charlatanismo, estava ligada a história, imagem e estereótipos do povo cigano. Ao longo da história, tanto a quirologia como a quiromancia estiveram ligadas aos povos ciganos, cuja cultura exclui a documentação escrita. Mas, por meio de fatos como figuras e histórias populares, é possível averiguar este vínculo. Frente a popular associação entre a leitura de mãos e a etnia cigana, para os que desejam conhecer mais sobre o imaginário em torno da quiromancia, desenvolveu-se uma área do trabalho em torno da origem, imagem social e peculiaridades culturais em torno do povo cigano.

 

 

 

AFINAL, QUEM É CIGANO?

“Estar diante do cigano era estar diante da diferença extrema, fragmentadora. Agindo como elemento de decomposição da suposta unidade que constituía a sociedade mineira, os ciganos catalisavam conflitos e davam vazão a incertezas. Disso resultou, muitas vezes, uma coisificação dos ciganos, e consequentemente as mais variadas formas de violência contra eles”.

(TEIXEIRA, 2007, p. 137)

Para compreender todos os contextos que envolvem a quirologia, optou-se uma abordagem da etnia cigana frente sua popular associação com a leitura de mãos. Entender qual é a imagem dos ciganos levantada por estudiosos como Fraser (2007), Moonen (2008), Liégeois (2005) e Teixeira (2007) levanta subsídios teóricos que enriquecem o entendimento do contexto da quirologia.

Contar a história de um povo errante que exclui a tradição escrita é um tanto complicado, ainda mais que os registros sobre eles foram escritos somente quando causavam algum problema. No Brasil, a abordagem literária acerca dos ciganos é rica em comunhão com o ocultismo, porém, escassa em abordagens históricas em nível de história, sociologia e antropologia. Traduções de trabalhos estrangeiros também são poucos, como por exemplo, o trabalho de Nicolle Martinez (1989), cujas considerações estão em nível hipotético.

A presente abordagem fundamenta-se no trabalho de Angus Fraser (2005), que fez uso de quatro referências para a construção da probabilidade da origem étnica cigana:

• pela evidência lingüística (grande semelhança entre o Romani, língua cigana e o Sânscrito, idioma de origem indiana falado em territórios iranianos antes de 300 a.C. como resultado do avanço de Alexandre Magno no noroeste da Índia em 327-326 a.C.);

 • por paralelos étnicos;

• através de estatísticas lexicais;

• por meio de estudos da antropologia física.

Segundo o autor, esse povo errante chegou às paragens Bálcãs no período medieval e foi se espalhando pelo mundo de maneira gradual. Chegaram disfarçados de peregrinos e despertaram uma intensa curiosidade, consequentemente, segundo Fraser (2005) teorias sobre suas origens se ploriferaram. Somente mais tarde foi possível deduzir por meio de sua língua de onde partiu sua diáspora. Durante os séculos, apesar da constante exposição a múltiplas influências e pressões, conseguiram conservar uma identidade diferente e demonstrar um notável poder de adaptação e sobrevivência. A sobrevivência, segundo o autor, é a principal conquista dos ciganos.

É um povo com idioma, cultura e um tipo racial comum, mas, segundo o autor, foi-se o tempo que podiam ser facilmente distinguidos, pois na atualidade, encontram-se consideravelmente diversificados. Outro fator semelhante a ser considerado é o que ocorreu através dos séculos com o significado atribuído ao término “cigano”. Tal como as variadas teorias de origem, o significado atribuído a nomenclatura apresentou um problema semântico não reivindicado pelos ciganos. O termo costumou ser aplicado indiscriminadamente a qualquer membro itinerante da população que não fosse obviamente um vagabundo. Algumas depreciações acresceram esse sentido amplo, no caso da língua britânica, ter o equivalente “traveller” assim como similares equivalentes em outros idiomas. A descrita equivalência designa cigano a qualquer viajante, fazendo possível a associação com os itinerantes tinkers, ou com os atuais adeptos da ideologia hippie ou New Age, que optam voluntariamente ao estilo de vida nômade. Qualquer descrição satisfatória, nas palavras de Fraser (2005) não está livre de ambigüidades.

Os perigos dessas designações podem ser verificados na evolução do vocábulo “cigano” nas leis britânicas em finais da década de 1950. Fraser justifica o exemplo britânico para generalizar o todo (no sentido das diversas localidades geográficas) já que os problemas de definição se fizeram mais agudos na Inglaterra, devido aos muitos elementos não romanis na ascendência de sua população cigana, acrescida da larga história de outros grupos nômades que existiam muito antes da chegada dos ciganos e que se ocultaram mutuamente em muitos aspectos da vida social no sentido de “ganhar a vida”. Durante período citado, os ciganos foram despojados de toda significação étnico ou racial, primeiro acidentalmente logo de forma deliberada. O desígnio cigano chegou a especificar “grupo de pessoas que cometiam um delito se acampassem ou montassem um posto”. Segundo Fraser (2005) o problema semântico já estava tão complexo que somente os tribunais poderiam resolver. O problema só foi resolvido quando foi aprovada uma Ata de Lugares para Caravanas em 1968 que regularizou a provisão de acampamentos ciganos, porém não garantia um significado que considerasse origens ou traços étnicos, apenas pelo estilo de vida. A regularização do sentido étnico ao significado de cigano ocorreu em 1965 por meio da Ata de Relações Internacionais contra a discriminação aos ciganos recorrente na época.

 Segundo o autor, esses debates ingleses servem para ilustrar debates em tribunais que se dão desde a chegada dos ciganos na Europa, e esses servem para demonstrar um “importante dilema que se nega a desaparecer em qualquer discussão sobre os ciganos: é a forma de vida o fator primordial em sua definição?” Apesar de ainda não haver uma resposta conceitualmente habituada em sociedade, deve-se considerar que os ciganos possuem as características essenciais para distinguir um grupo étnico: primeira, uma larga história compartilhada, do qual o grupo é consciente por se distinguir de outros grupos e cuja memória mantêm viva; a segunda é uma tradição cultural própria, o que inclui costumes e comportamentos familiares e sociais, associados em parte, mas não necessariamente, com práticas religiosas originais e definidas. Outras características que não essenciais seriam: uma origem geográfica comum, uma literatura comum, própria do grupo; uma religião diferente dos grupos vizinhos ou da comunidade geral e ser uma minoria ou ser um grupo oprimido no interior de uma comunidade mais ampla.

Diante dessa visão ocidental regulamentada questiona Fraser (2005): que orientação se pode esperar dos próprios ciganos, considerando que sua própria atribuição um importante mecanismo para delinear a identidade étnica? Não existe em romani qualquer vocábulo correspondente a cigano. Segundo o autor, é inacabável o debate a respeito de quem é verdadeiramente cigano e quem não é. Também é inútil falar em términos geográficos como “os ciganos franceses” e se faz difícil e enganoso generalizar sobre “os ciganos”.

Na contribuição de Moonen (2008), em decorrência da nomenclatura, cigano é um termo genérico inventado na Europa do século XV e que ainda hoje é adotado por falta de outro melhor. Segundo o autor, os próprios ciganos costumam usar autodenominações completamente diferentes.

Diante da grande diversidade enfatizada por Fraser (2005), Moonen (2008) apresenta a distinção de três grupos, reconhecidos tanto pelos ciganos como os pelos ciganólogos:

1. Os ROM, ou Roma , falam a língua romani; divididos em vários subgrupos, com denominações próprias, como os Kalderash (Kalderash = caldeireiros), Matchuaia, Lovara, e os Curara. Predominância nos países balcânicos, mas a partir do Século XIX migraram também para outros países europeus e para as Américas. Os mais estudados e descritos, se auto-denominam “os ciganos autênticos”.

2. Os SINTI, falam a língua sinto e são predominantes na Alemanha, Itália e França, onde também são chamados Manouch;

3. Os CALON ou KALÉ, língua caló, predominantemente ibéricos, já que vivem principalmente em Portugal e na Espanha, onde são mais conhecidos como gitanos, mas que no decorrer dos tempos se espalharam também por outros países da Europa e foram deportados ou migraram inclusive para a América do Sul. Apresentam maior nomadismo, no sentido de não ficarem por muito tempo em um único lugar. Segundo Moonen (2008), aparentemente, nada se sabe sobre eles no Brasil, e pouco na Europa. No Brasil pode-se encontrar ciganos desses três grupos.

E depois dessas divisões e divisões Moonen (2008, p.3) conceitua: Apesar de todas estás dificuldades, definimos aqui cigano como cada indivíduo que se considera membro de um grupo étnico que se auto-identifica como Rom, Sinti ou Calon, ou um de seus inúmeros sub-grupos, e é por ele reconhecido como membro. O tamanho deste grupo não importa; pode ser até um grupo pequeno composto de uma única família extensa; pode também ser um grupo composto por milhares de ciganos. Nem importa se este grupo mantém reais ou supostas tradições ciganas, ou se ainda fala fluentemente uma língua cigana, ou se seus membros têm cara de cigano ou características físicas supostamente ciganas. (Ibidem, 2008, p. 3)

Há hoje uma consciência por parte dos ciganos de fazer parte de uma entidade maior (FRASER, 2005). Prova disso é o aparecimento e desenvolvimento desde os anos 1960 de organizações nacionais ciganas, em defesa própria, para garantir o reconhecimento dos direitos ciganos e para lutar contra as políticas de rejeição e assimilação. Essas organizações têm conduzido laços internacionais que são contrários ao fragmentado cigano, a ênfase é a diferença e a distinção. Consolida-se o principio de uma nova consciência dos laços históricos e culturais que compartilham todos os ciganos.

Sem embargo, Fraser (2005) afirma que depois de séculos, os ciganos tem todo direito de serem considerados um “povo da Europa”, visto que grande parte da população européia tem ascendência neles, estando entre os poucos “pan europeus” do continente.

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ORIGENS DOS CIGANOS

Cena do filme "Latcho drom" de Tony Gatlif

Os próprios ciganos, como grandes estudiosos do tema cigano, a citar o cineasta Tony Gatlifh consideram evidente as semelhanças entre os ciganos e os hindus para a dedução de que suas origens partem da Índia. Segundo Fraser (2005) alguns ciganos que decidiram na época moderna estudar e investigar suas origens sentiram-se atraídos pela hipótese que convergia seus antepassados com os guerreiros jat e rajbut, que formavam a segunda categoria entre as quatro castas da sociedade hindu.

Há registros na história persa que também apontam a possibilidade de terem saído da Índia, todavia, o leitor mais cético não se satisfaria com essas conclusões. Nas palavras de Fraser (2005), a língua romani como seu povo, tais como a língua e as populações da Índia estiveram expostas a múltiplas influências históricas, demográficas e sociolingüísticas durante os séculos e a conclusão que aponta para a Índia ainda não pode ser fechada. Sem ignorar as considerações de Fraser, acerca da língua falada na Índia não garantir que ciganos eram daquela região, hipótese que abre a necessidade de provas complementares, a nível cultural, Moonen (2008) gradua:

Desde então, a origem indiana nunca mais foi colocada em dúvida e linguistas posteriores apenas têm acrescentado mais dados comprobatórios, restando hoje apenas dúvidas sobre em que época ou épocas, e em que parte ou partes da Índia estás línguas eram faladas, admitindo-se em geral que tenha sido a região noroeste da então Índia (atual Paquistão), por volta do ano 1000 da era cristã. (Ibidem, p. 2)

Algumas pressuposições especulativas contribuírem para densificação do estereótipo cigano, conforme Liégeois (2005). Essas histórias já populares possuem diversas versões, uma delas toma os ciganos como descendentes daqueles três homens que crucificaram Jesus Cristo e por isso passaram a andar sem parada como castigo. Outra história os tem como descendentes de Adão e Eva, os filhos de Caim marcados pela marca escura e que estavam destinados a viver sem parada. Há também o relato de que eles acolheram a Virgem Maria, assim como Maria Madalena e Santa Sarah Kali (não canonizada pela Igreja Católica Apostólica Romana), vagando pelo mundo para guardar os segredos ocultos deixados por Jesus Cristo e oprimidos pelo império romano. Enfim, esses relatos ou tendem para uma marginalização dos ciganos (em seu maior número) ou para uma visão romântica e enaltecedora dos mesmos.

Nas considerações de Liégeois (2005) como nas de Fraser (2005), por meio de documentos tem-se um provável apontamento da dispersão dos ciganos. O primeiro documento vem da antiga Pérsia, atual Irã, por meio de uma história contada pelo poeta Firduci e que tem similaridades com os poemas Sufis e com a estória contada pelo históriador Hamza de Ispahám. O poema é um épico persa do Shahnameh ou “livro dos Reis”.

Da Pérsia os estudos apontam seguidamente para o Egito, Império Bizantino e Bálcãs, Servia, Bulgária, Walaquia, Moldávia (atual Armênia) partindo grupos para o oeste como para o este e expandindo-se por toda a Europa e dela alcançando as Américas. Essa seqüência ocorreu em ondas migratórias

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PRESSÃO HISTÓRICA SOBRE OS CIGANOS

Nas palavras de Fraser (2005), dentro de uma Europa Ocidental, onde todos se viam obrigados a viver uma vida de servidão, de trabalho pesado e de piedade, os ciganos representavam uma negação de todos os valores e premissas essenciais em que se baseavam a moralidade vigente. Duas entidades, ao longo da Idade Média representavam as bases do modelo de vida ocidental: o Estado, que em sua trajetória de consolidação definia pactos sociais que garantiam os direitos dos considerados cidadãos; e a Igreja, seja em sua variante Católica Apostólica Romana ou nas múltiplas protestantes, que chamavam o indivíduo moralmente ou para o cumprimento dos sacramentos e palavras doutrinárias. Invariavelmente os chamados ciganos em suas tradições e modelos de vida rompiam com a vigência dessas entidades. Pode-se citar a falta de registro de muitos ciganos, o modelo de vida que violava a propriedade privada, o casamento deles independer de alguma sanção seja do institucional religioso ou do estado, a justiça “a parte”. Essa abstenção os colocava como não cidadãos isentos dos direitos comuns aos indivíduos das sociedades por onde passavam.

A contar com o fator da multiculturalidade, visto que em suas trajetórias assimilaram variadas culturas, o povo cigano carregava o caráter do desconhecido ficava exposto a uma incisiva visão etnocêntrica dos não ciganos e, consequentemente com uma dificuldade de inclusão social, seja em nível econômico ou cultural. Conforme Fraser (2005) por onde passaram são registradas violências contra os ciganos, na forma de racismo, exclusão, expulsão, xenofobia, assimilação, extirpação e perseguição. Pode-se citar Kossovo, após o legado do Império Otomano (MARUSHIAKOVA e POPOV, 2001), e a perseguição nazista, na tentativa de exterminá-los da Alemanha.

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IMAGENS E ESTERIÓTIPOS DOS CIGANOS

Quando se fala em imagem de ciganos, tanto Fraser (2005) como Ligeóis e Teixeira (2007) remontam a imagens pintadas por artistas não-ciganos ou representadas em gravuras ou ilustrações para delinear uma visão, mesmo que de produção individual, propagada socialmente.

Fraser (2005) começa pelo vestuário, a identificar que roupas ciganas converteram-se no mundo em paradigma do exótico. Segundo ele, diversas pinturas e gravuras dos Países Baixos com temas religiosos, recorreram ao tipo cigano para representar mulheres orientais e especialmente egípcias. Motivos similares se fizeram populares entre os pintores italianos durante a segunda metade do século XVI. Outros modelos representavam uma cigana lendo mãos enquanto um garoto roubava a bolsa. Segundo Fraser (2005), a composição representa a implantação de um estereótipo concreto na mente do público. Também cita a farsa de Gil Vicente onde as ciganas são adivinhas impenitentes e os ciganos são viajantes de barcaças. Uma peça teatral suíça anônima de 1475, em uma na cena se pede que se fechem todas as portas e janelas da casa, tranquem o estábulo e recolham as galinhas pois vão passar os ciganos. Outra peça de Hans Sachs, quase da mesma época, associava os ciganos ao roubo, à bruxaria e à artimanha.

A prática da leitura de mão e da adivinhação sempre esteve vinculada a esse povo. Suas imagens européias mais antigas retratam essa atividade. Em geral, os associam a uma carga negativa para os moradores da região por onde passavam. É enfatizada a cor escura de suas peles, assim como cabelos sempre volumosos e negros ou ainda os descreve comparando-os com animais.

Segundo Teixeira (2007), no final do século XVIII e inicio do XIX houve a emergência de uma nova imagem dos ciganos, manisfetação verificável tanto nas canções populares (como uma que Carlota Joaquina cantarolava) quanto em peças teatrais. No Brasil, tendo a importância social do teatro do século XIX, os ciganos são menos ridicularizados, passando a ser representados como figuras românticas. O autor remonta a recorrência dos autores brasileiros aos modelos europeus, vendo nos ciganos uma figura valorizada tanto pelo seu exotismo como por sua proximidade do tipo europeu. Duas óperas foram executadas em Ouro Preto em 1771, “Ciganinha” e “A vingança da Cigana”, nas palavras do autor “a tradicional identificação com o crime e o comportamento desviante foi, com uma dose de piedade, diminuída enquanto acentuava-se a imagem romântica da buena dicha (leitura da sorte). As mulheres foram substancialmente transformadas de “leitoras da sorte sujas em mulheres heroínas, altamente sensuais e desejáveis” (TEIXEIRA, 2007, p. 124).

Conforme o autor, a visão estigmatizadora da cultura cigana foi sendo substituída por um encantamento a sua liberdade e “espírito indômito”. O comportamento diferenciado ganhou valorização por sua “capacidade de lidar com a dificuldade da existência diária”. Diante dos modelos Românticos e do ideal boêmio de Cervantes, emolduravam características glorificadas. Também carregavam a presença do sobrenatural e do mistério. Toma o autor como melhor exemplo da liberdade enaltecida a personagem da ópera “Carmem” de Georges Bizet (1838-1875), baseada no romance do escritor Frances Prosper Mérimée (1803-1870) e eternizada mais tarde em varias produções fílmicas.

Teixeira (2007) acrescenta uma característica de impacto no Brasil, o olhar cigano. Segundo o autor, a sociedade cigana por ter como base fundamental de transmissão de saber, e até mesmo para firmar contratos, tem o olhar como ponto de partida para compreensão entre duas pessoas. Não se sabe quando mas foram considerados portadores de um olhar mágico e poderoso, “capaz de lançar pragas e maldições”.

Já nas peças dos brasileiros Martins Pena e Manuel Antônio de Almeida, como nos livros de Manuel Antônio de Almeida (Memórias de um Sargento de Milícias), o cigano volta a ser representado como ativo do roubo e do trambique De diversas fontes (FRASER, 2005) aprendeu-se sobre eles por meio de suas formas de ganhar a vida: as mais mencionadas são a leitura de mãos e a mendicância. Outras são o comércio de cavalos, o manejo de metais, a cura, a música e a dança. O roubo de comida, roupas e também dinheiro também é um tema recorrente. Fraser (2005) também menciona uma justiça própria, como “um império dentro de outro império, já que quando entravam em conflito entre si, as autoridades locais deixavam que por si só fizessem sua justiça.

Em seu livro “Anticiganismo: ciganos na Europa e no Brasil”, Moonen (2008) dedica um capítulo inteiro à construção e à perpetuação das imagens anticiganas. Segundo ele o aparecimento dos ciganos na Europa Ocidental evidencia documentos históricos que:

(…) deixam claro que muitos destes ciganos aparentemente tinham uma conduta pouco compatível com os valores culturais europeus da época, pelo que já no Século XV começaram a ser formados os primeiros estereótipos, segundo os quais os ciganos: 1) eram nômades, que nunca paravam muito tempo num mesmo lugar; 2) eram parasitas, que viviam mendigando; 3) eram trapaceiros, sempre aproveitando-se da credulidade do povo; 4) eram avessos ao trabalho regular; 5) eram desonestos e ladrões; 6) eram pagãos que não acreditavam em Deus e também não tinham religião própria. Por causa disto, em todos os países europeus, sem exceção alguma, os ciganos passaram a ser violentamente perseguidos, e em alguns países foram até exterminados. Cigano virou palavrão; ser cigano virou crime. (Ibidem, p. 2)

O problema da perpetuação desses conceitos é que são de âmbito generalizante, ou seja, se um cigano roubou um dia, todos são ladrões, reduzindo-se milhares de pessoas a um estereótipo mal definido. Um estudo de Moonem (2008) em torno dos primeiros ciganólogos revela outro problema. Somente a partir de meados do Século XVIII foram publicados os primeiros livros sobre os ciganos europeus, e quase todos os autores reforçaram ainda mais os estereótipos negativos já existentes. Dois pioneiros dos estudos ciganos: o alemão Heinrich Grellmann (1753-1804) e o inglês George Borrow (1803-1881) segundo Moonen (2008), até hoje costumam ser citados por muitos ciganólogos. Grellmann editou traduções de seu livro sobre ciganos em varias línguas. Consta que o corpo de seu livro tem considerações de outros livros, de procedência duvidosa e sensacionalistas, sendo que ele só teve contatos esporádicos com alguns poucos ciganos. Em um capítulo sobre comidas e bebidas ciganas, transcreveu a notícia de jornais de 1782 que acusava os ciganos de serem antropófagos, ou seja, canibais, comedores de carne humana. Em decorrência da publicação, 84 ciganos foram decapitados enquanto o livro tornava-se um sucesso editorial propagando conclusões equivocadas sobre os ciganos. Borrow, tradutor e divulgador da Bíblia em vários idiomas, em seu livro sobre os ciganos apresenta uma imagem negativa e estereotipada dos ciganos espanhóis, com os quais teve contato. Antes da publicação, escreveu: “os ciganos espanhóis são o mais vil, degenerado e miserável povo na terra”. Segundo Moonen (2008) três são as imagens equivocadas que não podem ser generalizadas sobre os ciganos: a de ladrão, a de trambiqueiro e a de vagabundo.

O olhar acadêmico

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O trabalho que foca a organização e principalmente a interação da quirologia, não pode deixar de abordar tanto os preceitos populares, quer sejam especulação ou não, quanto os preceitos científicos acerca do assunto. Resolvi disponibilizar para meus leitores uma breve pesquisa sobre como a ciência encara a leitura de mãos. Trata-se de uma curiosidade, porém, um conhecimento que nos leva à visão de como a sociedade pode considerar a ciência para basear suas opiniões sobre a leitura de mãos. Também vale para aquelas pessoas que ousam dizer que a quirologia é uma ciência, para que repensem seus termos de linguagem e denominação, pois somente traz descrédito afirmar que algo pertence a ciência sendo que isso não pode ser comprovado, nem ao menos, verificado algum estudo científico sobre.  Do mais, conhecer o olhar acadêmico é de grande valia, pois já acostuma o aspirante a quirólogo ou quiromante conviver com as criticas que encontrará ao longo de seu caminho. 

Tratando-se especificamente de leitura de mãos, na acepção de quirologia, não foram encontradas realizações científicas específicas, em que a técnica seja o foco do objeto de pesquisa. A abordagem das teses e artigos citados não assinala diferenças entre o método quirológico e o adivinhatório pertencente à quiromancia. No entanto, tomando a leitura de mãos em seu sentido de quiromancia, ou seja, adivinhação por meio da análise das mãos, pôde-se observar estudos sobre superstição, magia, rituais mágicos e pseudociência que abordaram a leitura de mãos como integrante desse conjunto.

Em seu trabalho acerca da superstição, Almeida (2000, n.p.) enfoca o conceito da mesma na idéia de sobrevivência, ou seja, superstição como “algo que persiste remetendo a épocas e estágios primitivos e inferiores”. Sua pesquisa apóia-se nas “teorias das sobrevivências”, de Tylor, para concluir que é “tanto uma fonte de saber da humanidade (…) como é uma pseudociência, relevando-se, sobretudo, as teorias das “ciências do impreciso”, de Abraham Moles, e o cientificismo de Carl Sagan”.

Segundo o autor, o significado de superstição remete ao seu étimo latino superstitio, que originou superstes que significa sobreviventes. Pelo verbete o autor observa a seguinte definição: “Na concepção etimológica-antropológica de Tylor, é o que persiste das antigas idades”. E acrescenta:

(…) sentimento religioso baseado no temor ou na ignorância e que induz ao conhecimento de falsos deveres, ao receio de coisas fantásticas e a confiança em coisas ineficazes; crendice; crenças em presságios tirados de fatos puramente fortuitos; apego exagerado e/ou infundado a qualquer coisa. (ALMEIDA, 2000, n.p.)

A superstição abrange os mitos, fábulas, contos populares, o absurdo e o irracional. Partindo dessa estruturação, explica-se a “teoria das sobrevivências”, conceituada pelo que sobrevive da cultura mais primitiva ao se chocar com outra. É nesse contexto que a quirologia, no âmbito do ocultismo assim como rituais populares são expostos como “sobrevivências de um estado de espírito anterior, de traços de cultura mais primitivos no meio de sociedades mais adiantadas”. Todas as teorias citadas acima dão inicio a sistematização do conhecimento da superstição, e são, aos olhos do autor, reveladoras do “poder do imaginário em função de uma utilidade cotidiana e/ou satisfação psíquica” (Ibiden).

A superstição recebe duas classificações: somática ou clássica, aquela que tem referências históricas; e, pseudocientífica, a que busca referência nas manifestações contemporâneas. É no segundo grupo que o termo quiromancia ou simplesmente leitura de mãos é citado pelo autor ao lado de práticas como mediunidade, telepatia, curas de curandeiros e numerologia, ou seja, toda a gama das terapias alternativas ou chamadas de holísticas. Ao classificar esse corpus pseudocientífico, questiona se, realmente de fato, tudo que foi citado é acertadamente pseudociência. A questão fica em aberto, pelo caráter desconhecido das práticas pontuadas, e com o intuito deste autor não tomar vias reducionistas em seu caráter analítico de pesquisador científico.

Ponto importante colocado pelo qual Almeida (2000) é a presença hodierna da mídia. Definitivamente ela facilitou o acesso, a comercialização e a popularização das tidas pseudociências, independente de terem sido aclamadas pela pesquisa científica por sua probidade. Sem possuir reconhecimento da comunidade científica, o autor afirma manterem-se autônomas na multiplicidade de suas manifestações, sem ter uma epistemologia delineada. Relata a falta de esforços e clareza metodológica para realmente divulgarem resultados. Comenta a comum vertigem de precisão, já que a superstição, pseudociências ou ciências do impreciso possuem conceitos de enunciação vagos por excelência, como também é freqüente seus adeptos ou estudiosos escorarem-se em suportes científicos. Mantém como uma impossibilidade experimentada, o que vai justificar o jogo gratuito com as coisas da natureza, a mistificação, a boa ou má fé (seguida, geralmente do oportunismo) e de uma “estupidez metódica”.

As ciências do impreciso procuram abranger os fenômenos, as capacidades e os problemas do espírito. Essas áreas, terreno apropriado pelas pseudociências, são, até então, inapropriadas para a ciência. Tratando-se de ciências do impreciso, Almeida (2000) toma como referência principal Abraham Moles. Moles reconhece tanto a invenção como a existência do transcendental. Segundo ele, falta-nos “descobrir seu papel e definir o que significa “ter certeza” dentro do mundo dos valores intelectuais”. O autor não ignora a oposição trilhada pelas pseudociências à imagem da ciência em suas considerações metodológicas e na definição de sua epistemologia, e acrescenta o valor do sucesso como propósito desse caminho, ou seja, as ciências do impreciso como via de acesso ao poder. O autor pontua alguns padrões e características de pseudociências baseadas na superstição:

  • materialização carecendo de comprovação científica;
  • dicotomia de probabilidades incertas entre possível e impossível, concebível e inconcebível;
  • “impossibilidade experimentada”, ou seja, situações que envolvem pessoas vivenciando fenômenos ou fatos inexplicáveis a luz da ciência;
  • escoro em suporte científico ou religioso;
  • definições vagas advindas de fatos fluidos;
  • presença de uma suposta “encarnação do poder” seja por meio da cura, ligação cósmica ou expiação.

Moles (apud ALMEIDA, 2000) prevê duas alternativas advindas da acepção das ciências do impreciso. Todas as duas refletem uma crise ou conflito entre o homem e a ciência: tomando a demonstração de precisão nos resultados das ditas ciências do impreciso porém a impossibilidade de compreensão de seus mecanismos cria uma oposição à ciência dentro de sua capacidade de agir no cotidiano humano; a segunda situação declara o pensamento científico como “totalitarismo de espírito, considerando que todo fato totalitário conduz a uma oposição permanente e inerente a sua natureza” tendo a única forma de se opor a racionalidade universal o abrigo dos “novos deuses”. Moles (ibdem) salienta o fato da racionalidade total não caber à humanidade, todavia torna-se sensato a ciência investigar a visão irracional do ser humano já que essa também é um determinante de nossas ações como fator de variância.

Diante das constatações passadas pelas teorias descritas, o que torna a superstição uma sobrevivente tão antiga e tão popular até mesmo entre esclarecidos? A resposta enunciada por Almeida (2000) é a linguagem. Ele constata certos traços como: a simplicidade, o enunciado de propriedades tidas como plenitudes de princípios existências ou metafísicos, a transferência de moral e responsabilidade, o sinal de advertência, a evocação de um conselho, a relação com o cotidiano, o receptor que não se opõe a sua tradição e o acarretamento do corpo da memória coletiva das experiências humanas (signo icônico-utilitário é a mensagem para alguém).

Diante da descrita identificação em face a eficácia e aspectos da linguagem utilizada pela pseudociência, Almeida (2000, n.p.) tenta associar semiótica e superstição sob o modo filosófico. Ampara-se teoricamente em Levi-Strauss, Deleuze e Guattari para afirmar “ser a superstição um platô, ou seja, uma zona de intensidade contínua do processo de informação/comunicação na qual há um regime de signos, uma expressão autônoma, suficiente e eficiente composta por enunciados”. Diante de sua sobrevivência e popularidade, a pseudociência estabelece um processo comunicativo que independe de seu conteúdo já que representa um mecanismo de tradução de símbolos imprevistos pela ciência. Segundo Foucault (apud Almeida, 2000, n.p.) “no regime de signos todas essas teorias ou enunciados são funções da existência da linguagem”, o que naturaliza a força da superstição.

Em seus estudos, o folclorista Antonio de Paiva Moura (apud ALMEIDA, 2000) identificou “certo orgulho” da comunidade científica européia do século XIX, em “dizer que outros povos eram supersticiosos e eles eram esclarecidos”. Todavia, mesmo que esse orgulho possa representar um posicionamento recorrente da comunidade científica, o folclorista aponta o fato das práticas tidas como supersticiosas estarem em paralelo com o desenvolvimento científico em todo o mundo, e, que pessoas de variados posicionamentos de crença acabam por recorrer às pseudociências também em todo globo terrestre.

Fica claro que não se podem realizar estudos acerca da superstição sem coligar o preconceito em variadas nuances e sob variadas circunstâncias. Em seu conceito, a superstição pressupõe uma crença e representa um aspecto e fato cultural que acompanha a humanidade desde épocas imemoráveis, sendo acertada como uma tradição. Porém Almeida (2000) ocupa-se do questionamento: até que ponto a superstição é um preconceito? Há, conforme ele um equívoco semântico em ter-se atualmente como significado de preconceito, superstição. O autor coloca o lugar da superstição na sociedade por meio de diferenciações entre a mesma e o preconceito:

Na nossa opinião, a superstição é um produto da aculturação, enquanto o preconceito é individual; a superstição é estabelecida no meio social, o preconceito é pré-concebido; a superstição releve condições coletivas e é altruísta; o preconceito é alienante; a superstição resulta da psicologia social popular (id, inconsciente coletivo); o preconceito é uma “neura” (ego); a superstição pressupõe tomar uma atitude diante de um referente de “sobrevivência”; o preconceito provoca uma ruptura; a superstição é linguagem, o preconceito é monólogo; a superstição é agregativa, abrangente, o preconceito é restritivo. (ALMEIDA, 2000, n.p.)

Passando para uma interpretação sistêmica da superstição, estabelece-se uma crítica da crendice. Segundo o Almeida (2000), os maiores detratores das crendices populares são cientistas que não aceitam a interferência de sua proposta “ingenuamente sábia”, em face de seus parâmetros não se solidificarem nos princípios da legitimidade aceita pela comunidade mundial cientifica. De todos eles, Carl Sagan seria o mais severo em suas expressões, já que coloca a superstição responsável por respostas fáceis que esquivam-se do exame cético, banalizando a experiência e aproveitando-se da credulidade, generalizando-a em pura charlatanice. Porém, admite que ela fala às necessidades emocionais poderosas das quais a ciência não se ocupa. Abraham Moles também a coloca como “reducionismo aceito” sob a justificativa da pseudociência não respeitar ou considerar os limites impostos pela natureza, podendo se tornar uma “doença do espírito”. Festinger, a vê como o meio mais seguro e eficaz de governar os homens, tendo em vista que a credulidade é mais fácil em ceder à manipulação.

Tesmer (2008) investigou e avaliou o relato de três pessoas que passaram pela intervenção ritualística mágica e que foram bem sucedidas em solucionar seus problemas. A análise do autor foi feita sob a identificação dos princípios comunicativos empregados nos três casos e na construção de uma teorização da eficácia sob o amparo do discurso simbólico. Segundo o mesmo, a magia é uma manisfetação extrema da função simbólica, onde os signos não somente podem significar como podem produzir ou promover acontecimentos nas vidas das pessoas. Ocorre uma “re-significação” sob a condução dos agentes pseudocientíficos.

Nesse espaço teórico, a quirologia ganha espaço quando o autor analisa o diagnóstico realizado nos casos para identificar o problema dos consultados. O diagnóstico na maioria dos casos é feito por intermédio da leitura das mãos. Essa é utilizada de maneira a impressionar os consulentes pela precisão e coerência dos dados pessoais descobertos pelo agente pseudocientíficos. Segundo o autor o próprio cliente dá as informações durante a entrevista que o quirólogo parece “descobrir”. O agente faz comentários de alto nível de generalidade de forma proativa com o intuito de captar as respostas e estímulos que produzem no cliente. Com essas informações obtidas, o quirólogo pode perceber qual é o contexto sociobiográfico que a pessoa se encontra e formular proposições suficientemente vagas para conectar com a vida dos mesmos. Conforme a teoria hipotética, o manejo de elementos simbólicos abre a mente à múltiplas associações e permite relacionar diversos níveis da realidade

Gómez (19–) em seus estudos acerca de grupos sociais e as práticas mágicas identificou que as pseudociências ou magia se posicionam de maneira marginalizada na sociedade, já que funcionam de modo autônomo e independente frente às prolações científicas. Também identifica uma maior aproximação das mesmas com os setores menos privilegiados da sociedade. Nesse artigo como nos outros citados, há um reconhecimento de uma comunicação simbólica nesses sistemas “mágicos”, e ainda mais, um sistema de linguagem que varia de acordo com os grupos culturais e sociais. Nas palavras da Gómez (19–), por detrás da marginalização das técnicas mágicas se esconde o medo e temor por algo que não se conhece completamente, algo estranho ou incompreensível.

Indícios de origem, lendas e curiosidades

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Quando e onde surgiu a quirologia ainda é um mistério para a história, pois não foram localizados dados comprobatórios consistentes, por isso, o presente trabalho tentou abranger o máximo de teorias, lendas e vestígios acerca da leitura de mãos. Trata-se de hipóteses em nível de probabilidade. Os levantes, a fim de expor o panorama que envolve a quirologia, incluíram lendas, histórias populares, interesses de figuras ilustres e curiosidades verificados em livros de quirologia, quiromancia e algumas biografias.

Segundo King (1983) é possível encontrar registros históricos de seus estudos nas escrituras de diversos povos antigos como os caldeus, tibetanos, chineses, babilônicos, sumérios, hebreus, egípcios, indianos e persas. Entre esses registros, os mais antigos que descrevem a técnica de leitura de mãos (que se aproxima da técnica propagada no Ocidente) encontram-se no Shariraka Shastra e no Samudrika Shastra, textos dos livros sagrados do hinduísmo, os Vedas, que datam aproximadamente 3000 anos a.C (VEDIC, 2005). A quirologia védica, portanto, é aquela de acordo com os ensinamentos ditados nos Vedas, a literatura sagrada dos Hindus, que é tida como uma “revelação de Deus”.

O conhecimento advindo das escrituras sagradas indianas é comumente chamado de védico, e subdivide-se em muitas áreas de conhecimento. Dentro do Samudrika Shastra existe uma rama fundamentada e especializada nos astros, denominada de Jyotish, segundo o Vedic Vydia Institute, uma das seis disciplinas do Vedanta (disciplina separada dos Vedas, mais popularizada). É considerada uma das mais velhas escolas da astrologia antiga. Tem uma origem independente, porém, interage com todas as outras escolas na Índia.

Segundo informações do Instituto indiano de astrologia, Astrogyan, “o termo em sânscrito deriva de jyótis, desmembrado em “ja”+”ya”+”o”+”t”+”ish” para chegar, respectivamente, ao significado que é “água ou nascer” + “além de” + “terra” e “estrelas” + “conhecimento””. Jyotish pode ser entendido de maneira generalizada em sua tradução como a “ciência dos corpos estelares”. Seus ensinamentos englobam a astrologia, que deu origem ao popular horóscopo, à quirologia, e que resulta em alguns apêndices como a gemoterapia (tramento por meio de pedras).

Fora do contexto indiano, o Jyotish é um conhecimento que tem acrescentado o conceito do holístico, que segundo Ferreira (2000), tem sua definição relativa à teoria do holismo que considera existir uma “tendência a interação dos elementos do universo e em especial dos seres vivos, e não de uma soma dessas partes”. 

Samudrika Shastra significa análise da mão na tradição védica, o termo sânscrito, traduzido pode ser entendido aproximadamente como “conhecimento de recursos do corpo”. Essa tradição assume que todos os códigos corporais naturais ou adquiridos representam uma marca psicológica de seu dono assim como de seu destino. Elevação , depressão, alongamento , diminuição e outras marcas se tornam relevantes. Histórias tradicionais da Índia são repletas de descrições de marcas auspiciosas encontrados nos corpos das pessoas memoráveis. Tendo como exemplos lendas sobre o príncipe Rama assim como Krishna, Gautama o Buda, e Mahavira o Tirthankara. Pode ser averiguado que tanto Hindus como Budistas compartilham está antiga tradição do Samudrika Shastra.

Os ensinamentos do Samudrika Shastra concentram-se em grande parte no estudo das características do corpo. “samudrikam tu” é especificamente o estudo das linhas da palma da mão e é o principal estudo dessa tradição. Diferentemente da quiromancia ocidental que é estudada e praticada em diversas partes do mundo, porém não  é reconhecida socialmente como um saber ou estudo eficaz , na literatura hindu antiga a leitura de mãos é um saber muito respeitado socialmente. Há uma semelhança entre quiromancia ocidental e indiana, porém, os conhecimentos da leitura de mãos indiana antiga são muito escassos, e hoje, seus conhecedores passam esse conhecimento apenas para os alunos de confiança para treiná-los sob a sua orientação. Este sistema de ensino é conhecido como “guru-shishya parampara” . Infelizmente, os conhecedores e praticantes da leitura de mãos indiana antiga são muito raros hoje e muito deve-se aos segredos guardados da “samudrikam Tu” ou a conhecida leitura de mãos pelos seus conhecedores escassos.

A precisão é a parte mais importante da leitura de mãos indiana. Os métodos esotérico e calculista de leituras das palmas podem dar detalhes de precisão não somente sobre o futuro, mas também sobre o presente e o passado. por exemplo, data e hora exata de nascimento, número de irmãos, conjugues entre outros. Acima estão algumas das características que fazem da quiromancia indiana um caminho distinto e excepcional da astrologia.

O surgimento da quirologia, sob a óptica oriental é proposto de maneira epifânica. As ferramentas metodológicas da atualidade não permitem esclarecer em que contexto, quando e principalmente como foi construída. Os registros históricos entregam uma teoria acabada atribuída a feições divinas. Seus resquícios de origem a colocam em posição de considerar a fundamentação de outra teoria igualmente questionável e criticada pela ciência, já que seus ensinamentos, na maioria dos casos, fundamentam-se em uma interligação entre os elementos das mãos e os arquétipos referentes aos astros. Porém, na leitura de mãos, utiliza-se apenas o arquétipo humano referido aos nomes dos astros, e não à influencia dos mesmos nas pessoas. Ou seja, o arquétipo de Marte, senso de independência, força para lutar e superar obstáculos.

Dentro das denominações dessa técnica de leitura de mãos, cada dedo corresponde a um astro, que rege determinado arquétipo e representa um estado de consciência Através de minuciosa análise das características desses elementos, como o formato dos dedos, seus comprimentos, textura, flexibilidade, assim como as linhas e os montes das mãos entre outros, pode-se delinear aspectos referentes a personalidade, aptidões, caráter e natureza do indivíduo.

Os tratados ocidentais de quirologia apresentam fundamentos correspondentes ao da quirologia védica. O que reforça uma ligação entre a quirologia e a cultura do oculto. Depois dos registros indianos, as escrituras de maior idade correspondem às da China, com referência no I Ching[1], “O Livro das Mutações”. Este foi objeto de interesse de Carl Jung que fez um prefácio para a obra traduzida do chinês para o alemão por Richard Wilhelm. Jung pontuou no citado prefácio “a maneira como o I Ching tende a encarar a realidade parece não favorecer nossa maneira causal de proceder”, ou seja, trata-se de um sistema informativo que não está para a lógica das preposições ocidentais. O que hoje conhece-se no ocidente como o I Ching, surgiu no período anterior a dinastia Chou (1150-249 a.C.), segundo Wilhelm (1956). Conforme Chevalier e Gheerbrant (2008), teria sido revelado a Fu-hi por um dragão saído de um rio. Baseia-se na combinaçao de duas determinações, o traço contínuo, que corresponde ao yang, e o descontínuo, à ying. Todas as modalidades do desenvolvimento da manisfetação, a partir da polarização da unidade primeira, exprimem-se em torno de todas as combinações dos trigramas que resultam 64 hexagramas superpostos. Cada um desses representa um movimento da natureza e julgamentos do mesmo que fundamentam as estruturas da sabedoria chinesa. O sistema de leitura de mãos chinês, segundo King (1983), estrutura-se em oito trigramas, e consiste em uma “arte muito diferente, em suas regras e interpretações, da quiromancia ocidental”. Não obstante, em geral fornecem leituras “inteiramente compatíveis” com as obtidas por meio das técnicas ocidentais.

Esse sistema de leitura posiona a quirologia dentro de técnicas da medicina chinesa já pesquisada pela ciência. tem uma correlação com o Doin, uma técnica de massagem que compreende os preceitos da acupuntura. Também é conhecida como Tui-ná. Os descritos montes da quirologia ocidental e védica, são entendidos como áreas musculares, ligadas à glândulas, que por sua vez estão ligadas à orgãos do corpo e às percepções do indivíduo.

Um dos principais métodos de quiromancia taoísta chinesa implica no exame das mãos conforme os trigramas padrões formados pelas linhas e, em seguida, utilizando-se o I Ching para sua interpretação.

Mais tarde tradições taoístas de leitura da mãos encontraram correlações feitas com pontos de acupuntura, meridianos e com os cinco elementos: Terra, Água, Fogo, Madeira e Metal. Os trigramas do I Ching foram ainda incorporados em seu sistema de análise de mãos , atribuindo a cada um dos oito trigramas primários em áreas específicas da mão conhecido como “Palácios”, tanto na maneira em que mais tarde quiromantes europeus atribuiram montes aos planetas astrológicos. Cada área da palma da mão foi também atribuída a uma das quatro estáções.

Para os chineses os dedos representam um símbolo do dragão e a palma, um símbolo do tigre. Diante do significado simbólico para o contexto chinês, era importante que o dragão dominasse o tigre, sendo assim, ter dedos longos representam um sinal de inteligência , riqueza e espiritualidade. A fisionomia da mão não foi o ponto principal de observação da quiromancia taoísta. Observava-se o tamanho e a forma da mão, a cor e a consistência da palma da mão, a condição dos dedos e do polegar foram considerados, além das linhas, marcas e sinais de são encontrados na palma da mão em si, porém a leitura dos trigramas em associaçao com o que eles ja sabiam sobre os meridianos e a medicina chinesa formavam um conjunto de observação.

As escrituras por conseguinte mais antigas depois da indiana e da chinesa correspondem ao Tibet, Pérsia, Egito, Mesopotâmia e finalmente Grécia de maneira respectiva. Não foram encontradas outras informações a respeito da história ou contéudo dessas escrituras, a não ser as superficialmente expostas, extraídas de autores quiromantes como Cheiro (1985) e King (1983).

Amplia o conhecimento, a transcrição do relato de uma lenda referente ao Egito:

foi relatado por historiadores judeus, que Júlio César era tão versado nos assuntos de quiromancia, que um dia recebeu em audiência um pretenso filho de Herodes, e logo descobriu o impostor, porque pode examinar em suas mãos a falta de todos os sinais de realeza. (CHEIRO, 1985, p. 20)

Em relação às informações que remontam à Grécia Antiga, todos os livros sobre quirologia que consta das referências do presente trabalho citam o filósofo Anaxágoras como estudante da prática e explanam uma lenda, “sem aceitar sua verdade literal”, palavras de King (1983), que conta como a quiromancia atingiu a Europa. Conforme a lenda “o filósofo Aristóteles visitou o Egito, e descobriu um manuscrito em letras de ouro no altar de Hermes, abordando a quiromancia, e o encaminhou a Alexandre, O Grande”. Cheiro (1984) acrescenta que Aristóteles escreveu um texto dedicado a Alexandre, intitulado “Chiromancia“, qualificando-a como “estudo digno de atenção de uma mente elevada e indagadora”.

Os livros estudados, também sem exceção, fazem referência às passagens bíblicas como exemplo: “Deus selou a mão de cada homem, para que todos os homens possam conhecer a Sua obra” (BÍBLIA, A.T., livro de Jó, 37:7). Segundo Cheiro (1984) o original hebraico reza: “Beyad-kol-‘âdâm yakhthôm lâdoa at kol-anschêi ma’asseohu”. Outra alusão aos sinais nas mãos nas palavras de Rei Salomão, “Aumento de dias há na sua mão direita; na sua esquerda, riquezas e honra” (BÍBLIA, A.T., Provérbios de Salomão, 3:16).

Já na Idade Média, é possível sair do estado mítico e constatar informações que, apesar de não revelarem a origem do conteúdo exposto, preservaram a integridade do material, reservado das modificações que o saber oral pode estar exposto. Trata-se da existência de tratados e manuscritos de quiromancia, como o intitulado “História de dois Mundos” de Robert Fludd, publicado no início do século XVII e outro que data século XV (KING, 1983).

Segundo Vasari (19–), um biógrafo de Leonardo da Vinci, entidade que se encaixa nesse contexto, o pintor possuía um livro sobre Quiromancia, com anotações feitas por ele, intitulado “Da Quiromancia” (possivelmente a Chiromantica scientia naturalis ad dei lauden finit, ed. Veneziana de 1480)

Ainda na Idade Média, a quirologia e a quiromancia foram fortemente ligadas à “bruxaria”, seus conhecedores foram perseguidos e condenados à morte e muitos manuscritos retirados de circulação, apreendidos e queimados em público ou reservados para leitura de poucos personagens ocultos. 

Torna-se viável para a compreensão do imaginário acerca da quirologia, notar que ela compõe a gama que arranja as chamadas “ciências ocultas”, com forte literatura amparada na Teosofia. Fundada por Helena Petrovna Blavatsky no final do século XIX, em um contexto pessoal de comunicação com entidades invisíveis, e intimamente ligada a cultura religiosa e o conhecimento valorizado no extremo oriente, principalmente Índia. Segundo Blavatsky (2002), a teosofia pode ser definida como corpo doutrinário que sintetiza filosofia, religião e ciência, que está presente em maior ou menor grau em diversos sistemas de crenças ao longo da história. A Teosofia, segundo Blavatsky (2002, p. 7), é “o substrato e a base de todas as religiões e filosofias do mundo, ensinada e praticada por uns poucos eleitos, desde que o homem se converteu em ser pensador. Considerada do ponto de vista prático, é puramente ética divina”. Outras pessoas desde então, deram continuidade e formam até hoje à “Sociedade Teosófica”, com membros em variados países.

É de domínio popular a informação de que a quiromancia ou quirologia foi esparzida pelos ciganos. Segundo Charles Godfrey Leland (2000), que no século XVIII tornou-se membro de uma Sociedade de Sabedoria Cigana e publicou um tratado de quiromancia atualmente publicado pela editora Madras, em que cogita-se a possibilidade da quirologia ter sido introduzida no ocidente por intermédio das migrações ciganas. Krumm Heller, que escreveu “Tratado de quirologia médica”, livro teórico, afirma que os ciganos só atribuem descrédito a prática, visto que justificavam seus acertos interpretativos a seus poderes divinatórios. Porém, segundo Leland (2000), se por um lado os ciganos desvirtuaram a possibilidade de um desenvolvimento científico da quirologia, por outro, possuem o mérito de mantê-la viva, através dos tempos, pois, transmitindo seus conceitos de boca em boca, evitaram que a mesma caísse no ostracismo. O autor também pontua que tão importante foi a contribuição dos ciganos que muitos quirólogos modernos iniciaram suas pesquisas a partir dos fundamentos da Quiromancia Cigana.

Os estudos de Fraser (2005) a respeito da origem da etnia cigana apontam a Índia como ponto de partida. Ao relacionarmos os manuscritos mais antigos que ensinam a prática quirológica e a provável origem dos ciganos, pode-se, hipoteticamente, relacionar a eles a introdução da quirologia na Europa.

Atualmente, em nível acadêmico, segundo King (1983, p.6), desenvolve-se um estudo denominado dermatoglifia, que consiste no estudo científico das impressões digitais. O termo foi introduzido pelo Dr. Harold Cummins, o pai da análise de impressões digitais . “O método dermatoglífico permite obter informações a respeito do potêncial genético do indivíduo através de análise de impressões digitais”. Seu uso é possível na teoria e na prática da orientação dos esportes modernos e da metodologia do treinamento visando resultados de altíssimo nível. Segundo a American Dermatoglyphics Association como “a análise das ID´s podem revelar uma série de patologias congênitas e defeitos do desenvolvimento, por exemplo, Síndrome de Down”.

Existiram muitos quiromantes famosos. Dentre eles o quiromante francês do século XIX, Casimir D’Arpentigny, o psicólogo alemão Julius Spier, o ingles Louis Hamom, que usou o pseudônimo de Cheiro, é uma referência no universo da quirologia e atendia a corte inglesa.

Transcrever-se-ão algumas informações em torno da figura deste autor, com o intuito de expandir os conhecimentos, conceitos, e linguagem que compõem a esfera quirológica. Cheiro atendeu em consultas particulares e tirou a impressão das mãos “de coroadas cabeças da Europa, presidentes de república e líderes comerciais” (CHEIRO, 1985, p. 11), em uma inabalável trajetória de famoso quiromante no mundo ocidental. Previu com exatidão acontecimentos envolvendo figuras públicas de variados países que eram divulgados anos antes em noticiário próprio que levava o nome de “Cheiro’s World Predictions” e acabava por render matérias em jornais europeus da época. Escreveu, no fim da vida, obras explicativas para diferenciados públicos-alvo acerca de como praticar a quirologia.


[1] Livro apócrifo atribuído à cultura chinesa.